Ônus da prova

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Muito embora a colaboração das partes para o esclarecimento da verdade seja um dever (artigo 378 do CPC/15), o ônus da prova é considerado, na verdade, um encargo. Se dever é obrigação que, inobservada, atrai sanção, ônus, por outro lado, tem apenas o condão de colocar a parte em situação de desvantagem caso dele não essa se desincumba.

O ônus da prova tem um sentido subjetivo na medida em que é regra de atividade direcionada às partes, advertindo-as quanto ao que devem provar e quanto ao risco da não-desincumbência do ônus.

Há, porém e além, preponderante dimensão objetiva, a veicular regra de julgamento direcionada ao juiz, indicando-lhe sobre como deverá decidir se certos fatos não forem provados. Mais bem explicando, encerrada a instrução, e remanescendo para o magistrado dúvidas acerca dos fatos, não há espaço para que se deixe de julgar a causa. A saída, pois, trazida pela regra do ônus da prova, passará pela análise sobre que parte não cumpriu com seu encargo e deverá, por isso, sofrer com o prejuízo da não-comprovação.

Daí por que se diz que as regras relativas ao ônus da prova têm aplicação subsidiária, somente incidindo se o fato probando não for, em determinada hipótese, provado. Em suma, normas que, por via reflexa, dizem quem deve provar o que, quando alertam quem suportará os efeitos da não-prova. Ao mesmo tempo, como dito acima, essas regras orientarão o juiz, pois, independentemente de não haver prova, será imperiosa a prolação de uma decisão, eis que vedado o non liquet.

Distribuição estática do ônus da prova

Se denomina estática a distribuição do ônus da prova prévia e abstrata, que parte da premissa de o encargo da prova de determinado fato deve ser imposto àquela parte que se teoricamente se beneficiará caso o fato alegado prevaleça. Se é seu o virtual bônus, deve ser seu o ônus.

O artigo 373, I e II, do CPC/15 consagrou, como regra, a distribuição estática, fazendo recair sobre o autor o ônus de comprovar os fatos constitutivos de seu direito e sobre o réu o de comprovar os fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito do autor.

A distribuição estática já era a opção eleita pelo CPC/73, em seu artigo 333, encontrando críticas no sentido de ignorar as peculiaridades do caso concreto, estabelecendo uma regra geral que poderia se revelar injusta em determinados casos, em que uma parte ostentasse condição de hipossuficiência probatória diante da outra ou quando a prova era impossível ou muito difícil e  de ser produzida por aquele sobre quem recaísse o ônus de sua produção. Nesses casos, surgiu a ideia de que a distribuição estática deveria ceder a uma distribuição dinâmica – teoria das cargas probatórias dinâmicas -, segundo a qual o ônus da prova deve recair sobre a parte que tivesse maiores condições de dele se desincumbir, à vista da cooperação e da boa-fé processual. O encargo, assim, não seria distribuído antecipada e abstratamente, mas dinamizado in concreto.

Ainda sob a égide do CPC/73, portanto, doutrina e a jurisprudência passaram a admitir, de lege ferenda e excepcionalmente, a dinamização da distribuição do ônus da prova, mesmo fora de relações de consumo. Esse entendimento acabou positivado pelo § 1º do artigo 373 do CPC/15, que ampliou enormemente a possibilidade de inversão ope judicis do ônus da prova.

Inversão do ônus da prova

Se, como visto, a regra eleita pelo CPC/15 é a da distribuição estática do ônus da prova, é certo, todavia, que o ônus pode ser invertido, no sentido de atribuí-lo a quem, segundo a regra presente no artigo 373, I e II, não o teria em princípio. Essa inversão pode se dar por força de disposição legal que excepcione a distribuição estática (ope legis), por convenção das partes, ou, ainda, por decisão judicial (ope judicis).

Na inversão por obra da lei, o que se tem, em verdade, é norma específica que, em situações determinadas, distribui o ônus da prova de maneira diversa da regra geral do artigo 373, I e II, independentemente das peculiaridades do caso concreto e de qualquer juízo do magistrado.

A inversão do ônus da prova por força de lei é ilustrada pelas presunções relativas – de que é exemplo notório o artigo 2º-A da lei 8.560/92 – e, ademais, pelos artigos 12, § 3º, 14, § 3º, e 38, caput, do CDC, e 1.597, II, do Código Civil.

Os §§ 3º e 4º do artigo 373, de sua vez, consagram negócio processual típico ao admitir que as partes convencionem a distribuição do ônus da prova, antes ou durante o processo.

Naturalmente, há requisitos de validade para a convenção, que não terá lugar quando recair sobre direito indisponível6 ou quando dificultar em excesso o exercício do direito pela parte – também podem ser invocados como limitações à convenção sobre ônus da prova os artigos 190, parágrafo único, do CPC/15, e 51, VI, do CDC.

Finalmente, tem-se que, em certas hipóteses, a lei autoriza o magistrado a que, presentes determinados requisitos, inverta, ou não, o ônus da prova à luz das circunstâncias presentes no caso concreto, instrumentalizando, assim, a norma processual fundamental contida no artigo 7º do CPC/15, que assegura às partes a paridade de armas.

Sob a égide do CPC/73, é bem verdade que a inversão do ônus da prova por obra do julgador já se fazia presente no artigo 6º, VIII, do CDC e, recebendo, ainda, acolhimento pela jurisprudência por meio da aplicação da teoria da distribuição dinâmica, em hipóteses excepcionais. A amplitude e o regramento conferidos pelo CPC/15, todavia, são inéditos.

Por força do § 1º do artigo 373, que positivou a distribuição dinâmica no CPC/15 para estendê-la a hipóteses gerais, para além de relações de consumo, caberá ao juiz, por decisão fundamentada – contra a qual caberá agravo de instrumento (artigo 1.015, XI, do CPC/15) -, de ofício ou a requerimento das partes, dinamizar a distribuição do ônus da prova, além dos casos previstos em lei, quando presentes “peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade” de desincumbência do ônus da prova segundo a distribuição estática ou, ainda, quando verificar a “maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário”.

A distribuição dinâmica do ônus da prova, sem embargo, há que ser parcimoniosa, sendo vedada sempre que tornar impossível ou excessivamente difícil a desincumbência do encargo por aquele em desfavor de quem há a inversão (artigo 373, § 2º). Busca-se, com isso, evitar o paradoxo de se criar, com a inversão do ônus, precisamente a situação que se pretendeu prevenir, impondo-se à parte em desfavor de quem ocorre a inversão a produção de prova diabólica. Ora, se o equilíbrio, a igualdade processual e a paridade de armas fundamentam a dinamização, de igual modo possuem um núcleo essencial intangível que não pode permitir que nenhuma das partes saia prejudicada. Em resumo, seria ilógico, a pretexto de se resguardar o contraditório substancial de uma parte, sacrificar o contraditório da parte contrária.

Dúvida natural que surge, então, é saber qual seria o momento processual adequado para que o juiz, na hipótese da inversão ope judicis, inverta o ônus da prova. Em outras as palavras, a questão repousa sobre se a inversão é regra de instrução ou de julgamento, ou seja, se deveria o magistrado intimar a parte a fim de informá-la de que está a inverter o ônus em seu desfavor, excepcionando a distribuição estática e conferindo-lhe a possibilidade de desincumbir-se do encargo ao longo da instrução, ou se o magistrado, em sentença, adotaria a inversão, procedendo ao julgamento da contenda.

Na seara judicial, tempo houve em que alguns julgados do STJ sustentavam ser a inversão do ônus da prova um regra de julgamento, isto é, aplicável somente no momento em que proferida a decisão. A jurisprudência daquela Corte, nada obstante, acabou se consolidando no sentido de que a inversão é regra de instrução e que a inversão deve ocorrer em momento processual apto a oportunizar àquele contra quem é invertido o ônus condições de dele se desincumbir. O artigo 373, § 1º, como visto, positivou esse entendimento, remetendo a decisão acerca da distribuição do ônus da prova para o saneamento, previamente à fase instrutória (artigo 357, III), e afastando o risco de decisão-surpresa (artigo 10), já que a parte em desfavor de quem o ônus é invertido será alertada com tempo hábil para o desencargo.

__________

1 Câmara faz observação interessante ao exemplificar a hipótese de, em ação de cobrança, o autor alegar crédito contra o réu (fato constitutivo), o réu, em contestação, afirmar o pagamento do débito (fato extintivo) e o autor, em réplica, aduzir a invalidade do pagamento realizado pelo réu (fato impeditivo de um fato extintivo). Reputando silente o artigo 373 a esse respeito, aquele doutrinador defende que valeria o retorno à máxima de que o ônus é de quem alega, isto é, na hipótese do fato impeditivo de um fato extintivo, ao autor (allegatio et non probatio, quase non alegatio; ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat). CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo Processo Civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 233.

2 Trata-se da chamada prova diabólica, de dificílima produção. Exemplificando, imagine-se a situação de um ex-servidor demitido na época da ditadura militar em razão de perseguição política. Em princípio, o ônus da prova do fato constitutivo do direito seria do autor. Ocorre que, como sabido, em período obscuro de nossa história, a perseguição nem sempre se dava às claras, com muitas comunicações internas no âmbito da Administração ocorrendo em sigilo e culminando em atos que eram praticados somente com aparência de legalidade. Em tal situação, parece óbvio que seria mais fácil para a Administração demonstrar a regularidade do ato demissional que, para o ex-servidor, demonstrar a situação de perseguição, justificando-se, pois, a dinamização da distribuição do ônus probatório. O STJ também possui decisão a respeito do tema, dispensando o autor de reparação de danos morais em razão de notícia difamatória da prova da má-fé do jornalista. STJJ, Terceira Turma, REsp 1.420.285, rel. Min. Sidnei Beneti, DJ de 2/6/2014.

3 Vale ainda o registro de que está definitivamente superado o raciocínio de que fatos negativos (que não ocorreram) seriam impossíveis de serem provados. Somente as negativas absolutas configuram prova diabóliza. STJ, REsp 1.050.554, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 25/8/2009.

4 “Embora não tenha sido expressamente contemplada no CPC, uma interpretação sistemática da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais, confere ampla legitimidade à aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual esse ônus recai sobre quem tiver melhores condições de produzir a prova, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso”. STJ, REsp 1.286.704.

5 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado. 4ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 662.

6 Didier critica a vedação peremptória à convenção envolvendo direitos indisponíveis. É que seria possível que um negócio processual viesse para facilitar a comprovação do direito, não havendo por que a proibição peremptória impedir a hipótese. DIDIER JR., Fredie et. al. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 123.

7 Art. 190. (…) Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

8 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…)

VI – estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;

9 Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

10 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…)

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

11 Merece registro julgado do STJ estendendo a aplicação do artigo 6º, VIII, do CDC, e da inversão ope judicis, a causa envolvendo direito ambiental, difuso: “Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução”. REsp 972.902, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 14.9.2009. De igual sorte, há aresto estendendo aquela norma à ação civil pública de maneira geral: “A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, contém comando normativo estritamente processual, o que a põe sob o campo de aplicação do art. 117 do mesmo estatuto, fazendo-a valer, universalmente, em todos os domínios da Ação Civil Pública, e não só nas relações de consumo”. REsp 1049822/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe 18.5.2009.

12 Merece transcrição, quanto ao ponto, acórdão lapidar, elucidativo e didático do STJ: “(…) O regime geral, ou comum, de distribuição da carga probatória assenta-se no art. 333, caput, do Código de Processo Civil. Trata-se de modelo abstrato, apriorístico e estático, mas não absoluto, que, por isso mesmo, sofre abrandamento pelo próprio legislador, sob o influxo do ônus dinâmico da prova, com o duplo objetivo de corrigir eventuais iniquidades práticas (a probatio diabólica, p. ex., a inviabilizar legítimas pretensões, mormente dos sujeitos vulneráveis) e instituir um ambiente ético-processual virtuoso, em cumprimento ao espírito e letra da Constituição de 1988 e das máximas do Estado Social de Direito. 3. No processo civil, a técnica do ônus dinâmico da prova concretiza e aglutina os cânones da solidariedade, da facilitação do acesso à Justiça, da efetividade da prestação jurisdicional e do combate às desigualdades, bem como expressa um renovado due process, tudo a exigir uma genuína e sincera cooperação entre os sujeitos na demanda. 4. O legislador, diretamente na lei (= ope legis), ou por meio de poderes que atribui, específica ou genericamente, ao juiz (= ope judicis), modifica a incidência do onus probandi, transferindo-o para a parte em melhores condições de suportá-lo ou cumpri-lo eficaz e eficientemente, tanto mais em relações jurídicas nas quais ora claudiquem direitos indisponíveis ou intergeracionais, ora as vítimas transitem no universo movediço em que convergem incertezas tecnológicas, informações cobertas por sigilo industrial, conhecimento especializado, redes de causalidade complexa, bem como danos futuros, de manifestação diferida, protraída ou prolongada”. STJ, Segunda Turma, REsp 883.656, rel. Min. Herman Benjamin, DJ de 28.2.2012. No mesmo sentido: “Embora não tenha sido expressamente contemplada no CPC, uma interpretação sistemática da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais, confere ampla legitimidade à aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual esse ônus recai sobre quem tiver melhores condições de produzir a prova, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso”. STJ, REsp 1.286.704.

13 Na distribuição convencional, a inversão ocorre desde o ajuste; na legal, desde o início da demanda.

14 DIDIER JR., Fredie et. al. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 128; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 661.

15 WATANABE, Kazuo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 196.

16 REsp 422.778/SP, Terceira Turma, Rel. para o acórdão Min. Nancy Andrighi, DJ de 27/8/2007.

17 “Se o modo como distribuído o ônus da prova influi no comportamento processual das partes (aspecto subjetivo), não pode a inversão ‘ope judicis’ ocorrer quando do julgamento da causa pelo juiz (sentença) ou pelo tribunal (acórdão). (…) VI. A inversão ‘ope judicis’ do ônus probatório deve ocorrer preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade para apresentação de provas”. STJ, Segunda Seção, REsp 802.832, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJ de 21/9/2011.

Imagem: Arte Migalhas