Cabe conversão de prisão definitiva em prisão domiciliar, para mães ou gestantes?

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É de sabença generalizada a situação de constante violação dos direitos humanos nos presídios brasileiros, e isso não ocorre de maneira diversa com o sistema carcerário feminino. Nesse último, a cenário atinge contornos ainda mais gravosos, especialmente quando a pena se estende a familiares e crianças, ainda na primeira infância, que são submetidos às rotinas do sistema penal.

Não obstante a previsão legal de conversão de prisão preventiva em domiciliar, quando cumpridos os requisitos previstos nos artigos 318 e 318-A do Código Penal, foi apenas com o advento do julgamento do HC 143.641, de relatoria do Ministro Lewandovski, que se entendeu tratar de um poder-dever do juiz, não mais uma faculdade processual.

Dessa forma, passou-se a exigir fundamentação do juízo para a não concessão da prisão domiciliar, claramente mais branda ao réu, sem prejuízo da aplicação de medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP. É o consignado pelo Ministro Ricardo Lewansovski, no julgado supracitado de sua relatoria:

Diante dessas soluções díspares, e para evitar tanto a arbitrariedade judicial quanto a sistemática supressão de direitos, típica de sistemas jurídicos que não dispõem de soluções coletivas para problemas estruturais, a melhor saída, a meu ver, no feito sob exame, consiste em 32 Revisado HC 143641 / SP conceder a ordem, estabelecendo parâmetros a serem observados, sem maiores dificuldades, pelos juízes, quando se depararem com a possibilidade de substituir a prisão. (HC 143.641 REL. MIN. RICARDO LEWANDOVSKI, JULGADO EM 20/02/2018).

Tal concessão visou assegurar uma série de mandamentos de força constitucional, por vezes assumidos em seara internacional, diante da teratológica situação dos presídios brasileiros.

A prisão domiciliar surge no ordenamento jurídico pátrio como forma especial de cumprimento de prisão preventiva, tendo, portanto, uma natureza cautelar. Essa modalidade de prisão surge por razões humanitárias, como explica Paulo Queiroz, em razão de um constitucionalismo fraterno que colide com uma cultura de encarceramento ainda cultivada pela opinião pública, e fortalecida pela mídia.

Dessa forma, concluir-se-ia impossível sua aplicação após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, precisamente pela sua natureza acautelatória para o prosseguimento útil do processo.

Ocorre que, a despeito da natureza da decisão do STF convergir para a conversão da prisão preventiva em domiciliar, a jurisprudência do STJ foi mais longe, admitindo a conversão de prisão provisória (execução antecipada de sentença) em prisão domiciliar, obedecidos os requisitos previstos no CPP, no caso de ser mãe de criança com menos de 12 anos.

Isso porque os presídios femininos apresentam condição em flagrante desconformidade com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, presente em seu artigo 1º, e demais tratados internacionais ratificados pelo Brasil e internalizados em nosso ordenamento.

Não suficiente, essa situação dos centros carcerários está em descompasso com os Objetivos do Milênio de promoção de dignidade carcerária, em especial às mulheres gestantes ou com filhos em primeira infância. É sabido, em principal após o julgamento da ADPF 347, que os presídios brasileiros representam verdadeiro estado de coisas inconstitucionais, e são mais do que inaptos para prover condições mínimas que conformam com obrigações do Estado em zelar pelos direitos humanos.

É notório também que aqueles aprisionados condenados a regimes menos interventores são postos em condições mais gravosas de cumprimento de pena, decorrente da ingerência pública em respeitar os princípios constitucionais e legais de manutenção dos centros prisionais, em flagrante desconformidade com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil de humanização das penas, cujo objetivo precípuo é a ressocialização.

Sucede que com a recente alteração legal proposta pela Lei 13.257/2016 – Estatuto da Primeira Infância –, somadas a alteração proposta pela Lei n. 13.769/2018, de 9/12/2018, introduzindo os artigos 318-A e 318-B no Código de Processo Penal, bem como pela jurisprudência do STJ, é fato objetivo que o conteúdo de cautelaridade esvaziou-se da prisão domiciliar, de forma a admitir-se sua conversão mesmo em vista de prisões de natureza definitiva. Outrossim, é importante rememorar que a alteração legal do artigo 318 do CPP decorreu precisamente da assunção do Brasil de compromissos internacionais, mais especificadamente das Regras de Bangkok, restando da seguinte forma os requisitos para a concessão da prisão domiciliar:

Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:

 I – não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;

II – não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente

Em verdade, a interpretação aqui preconizada objetiva assegurar os direitos maternos da ré, e, sobretudo de seus filhos, de possuírem uma infância sadia e harmoniosa, alheia à rotina dos presídios nacionais, conforme a redação dada pelo artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente; preocupação esta com sede na Carta Magna ao estabelecer a criança como seio protetivo da família, sociedade e o Estado. É a redação do texto Constitucional:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Importa também apontar a inquietação do legislador infraconstitucional em alinhar os interesses da criança e do adolescente com os da genitora, materializada na recente redação do Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme alteração trazida pelo Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/2016).

Ante o exposto, não se observa óbice à interpretação analógica, in bonan partem, com o fito de que seja concedida à ré a possibilidade de cumprimento de sua pena definitiva em domicílio, quando preenchidos os requisitos legais para essa concessão, podendo o juízo inclusive adotar medidas outras que entenda cabível para o cumprimento da pena.

 

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[1] Para mais: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf

[2] QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal: Por um sistema integrado de direito, processo e execução penal. Editora JusPodivm: Salvador. 2018.

[3] A esse respeito: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/a858777191da58180724ad5caafa6086.pdf

Imagem: Arte Migalhas